Clara e Iara
Essas somos eu, Iara Carneiro, e minha minha companheirinha, Clara.

Clara é uma cachorra sem raça definida (vira-latas). Foi nesse dia ai, 02 de fevereiro de 2013, um domingo de manhã, que nos encontramos pela primeira vez em uma feira de adoção ali na Asa Sul, em Brasília - DF. Me apaixonei por ela no mesmo minuto em que a peguei nos braços e assim, com essa carinha meio triste, meio assustada, de quem não está entendendo nada, ela foi lá pra casa. Eu nunca tinha convivido com um cachorro. Meu marido já, cachorro de quintal, em cidade de interior, desses que vive solto por ai, vai onde quer, volta quando quer. Lá em casa não rolava. Minha mãe não gostava, tinha medo.
A gente não sabia nada sobre como criar um cachorro e a primeira coisa que fizemos foi sair com ela bem pequenininha, essa bolinha de pêlos, caminhando pelas ruas atrás de uma agropecuária onde pudéssemos aprender alguma coisa sobre o que dar pra comer, vacinas, primeiros cuidados. Qual não foi nossa surpresa quando, chegando lá, o rapaz me disse que cachorrinho pequeno assim, antes de ser vacinado, nem andar na rua não podia. Como assim? - pensei.
Essa história ai foi só pra ilustrar como nós não sabíamos nada mesmo sobre cachorros até então. Mas, e dai? Pra isso que existe google na vida, né?
Nas duas primeiras noites dela em casa, achei que estava arrasando. Eu lia tudo, assistia todos os vídeos. Colocamos ela pra dormir numa caixinha de sapatos, no banheirinho dos fundos, com coberta, garrafa pet com água morna, rádio tocando músicas relaxantes e um som imitando as batidas de um coração. Tudo pra ela se sentir bem confortável, simulando a presença da mãe e dos outros filhotes da ninhada, com quem ela estava acostumada a dormir até então. Mesmo assim, ela chorou sem parar por horas. Mas eu seguia firme, a internet havia me dito que era isso que eu devia fazer: deixar chorar até parar, para não acostumar mal o filhote. Olhando pra trás, sinto um pesar imenso em pensar que deixei uma criaturinha tão amável, tão pequena, tão frágil, passar por isso logo nos primeiros dias em casa.
Passadas as primeiras noites, ficamos bem. Li em algum canto que valia a pena dar biscoitos pro cachorro pra comemorar seus sucessos, que não valia a pena dar bronca. Ela aprendeu a fazer xixi no jornal, aprendeu a dormir na própria cama, nós brincávamos muito. Ela comeu os chinelos, mastigou os rodapés, arranhou e tirou o enchimento do sofá umas três ou quatro vezes. E estava tudo bem, era tudo coisa de filhote. Pus pimenta no rodapé. Troquei o sofá. Ela tomou as vacinas. Desceu pros primeiros passeios. Fez um monte de amigos cachorros. Eu chegava do trabalho correndo, buscava a Clara e já ia pro gramado perto de casa, onde vários cachorros e seus tutores se encontravam no fim do dia. A regra era: chega, senta, solta os cachorros. Deixa que eles se viram, brincam, se cansam. Cachorro cansado é bom que dorme quando chega em casa.
O tempo foi passando, a Clara crescendo, o primeiro cio chegou quando ela estava perto de completar um ano. Ela ficou sem paciência pros outros na rua. TPM, eu pensei. Logo passa, eu pensei. Nessa fase, ela começou a correr atrás de pessoas que passavam no gramado onde os cachorros brincavam. Tinha um salsichinha ali que fazia isso: corria atrás das pessoas, chegava pertinho, latia, latia, desencanava e voltava. Ele era pequeno, quase ninguém se importava. No início, achei que ela estava imitando esse cachorro, aprendendo com ele. Mas nem liguei: é coisa de filhote. Logo passa. Ela não era tão pequena quando o salsicha e algumas pessoas ficavam irritadas (com razão).
Logo, veio a fase da independência, de testar os limites. Aquele era o campo dela, ela ia pra onde queria, fazia o que queria, comia tudo que estivesse pelo chão, só voltava quando dava na telha... Até o dia em que atravessou o Eixão atrás dum pássaro. O tempo foi passando, ela brigou com a shitsu da vizinha por causa duma bolinha, correu atrás de um cachorro e embolou com ele no chão, latiu pras bicicletas e skates, correu atrás do motoqueiro quando fomos deixar lixo na rua e, nesse dia, achei que ela ia morrer atropelada. Decidimos em casa que era hora de deixá-la mais tempo presa na guia, aquilo não estava dando certo. Comprei uma daquelas guias retráteis. Ela era um cachorrinho feliz, precisava de espaço, de liberdade. E com essa liberdade precoce, com meu parco conhecimento sobre comportamento, sobre educação, comunicação, Clara continuava sua saga pela vida. Crescendo, latindo na cara das pessoas e dos cachorros que cruzavam o nosso caminho, latia na janela, rasgava o sofá. Os passeios ficaram cada vez mais difíceis. Não foram poucas as vezes em que um de nós dois voltou pra casa chorando, desgostoso da vida de um passeio com o cachorro. Alessandro (meu marido) começou a refugar, não queria mais sair com ela e arrumava qualquer desculpa para estar bastante ocupado na hora em que ela começava a latir sem parar porque queria ir pra rua. E eu queria levá-la pra todo lugar. Alê me dizia que ela não podia ficar dando nó na guia retrátil de tanto andar pra um lado pro outro enquanto a gente tentava comer um lanche na padaria. Ele cansou de me dizer isso. Mas eu pensava: o que você quer? Ela é cachorro, é nova, tem energia, mora em apartamento. Ela precisa se distrair, gastar energia.
Era hora de procurar um adestrador. Aquela vida não podia continuar. Não era aquilo que tínhamos planejado naquela manhã de domingo em que levamos aquele bichinho lindo pra casa.
A Clara tinha uns dois anos quando a saga em busca do adestramento começou. Procurava profissionais na internet, pedia indicações pras pessoas na rua, me desculpava todo o tempo pelo mau comportamento dela. Teve o moço que disse que ela era "como um cavalo indomável"; teve a moça que deixou um cachorro chegar perto dela na guia, mesmo comigo implorando para não fazer isso, e foi quando ela mordeu um cachorro pela primeira vez; teve o moço que deu tranco na guia a cada passo para ela aprender a andar do ladinho; teve o moço que fez a proposta de receber R$ 10 mil, levar o cachorro e voltar com ele "pronto". A cada nova pessoa, o olharzinho dela ia ficando mais triste. O nosso junto com o dela. A cada nova pessoa, a insegurança crescia dentro de cada um de nós. Não dava mais pra soltar, não dava mais pra brincar, não dava pra correr. E ela precisava gastar energia. A gente não sabia mais o que fazer.
Eu não era uma dona de cachorro relapsa. Eu já tinha lido tudo que tinha na internet, eu tinha certeza. Eu já tinha levado na acupuntura, na massagem, pra tomar homeopatia, floral. Ai teve a moça da consultoria online, duma empresa famosa de adestramento de cães de SP: filmei Clara em ação, solta, latindo "na cara" das pessoas e dos cachorros (calma gente, eu combinei antes com as pessoas, rs). Mandei pra ela e ela disse: isso é medo! - Medo?? Como assim medo? Medo do que? Por quê? Medo??
Acho que esse foi meu primeiro aprendizado com relação ao treinamento de cachorros (e olha que nem faz tanto tempo assim): de nada adianta a gente ter as melhores intenções, dedicar tantas horas, gastar tanto dinheiro, se a gente não souber o que procurar no google, se a gente não conseguir entender a linguagem um do outro. Ali eu me dei conta de que a Clara era muito mais do que a cachorrinha adotada que latia na cara dos outros. Percebi que existe um bando de informações sobre linguagem canina, sobre linguagem corporal, sobre comportamento animal, sobre comunicação interespécies. Comecei a pesquisar sobre medo e caia sempre em "agressividade em cães". Que angústia, meu cachorro não era agressivo! Ela é uma fofa, vocês não conhecem. Não sabem como é bonitinha quando está com a gente. Pensa bem, chamar essa cachorrinha ai de agressiva?Foi em julho de 2017 que Luiza Oliveira Dias finalmente me respondeu uma mensagem enorme pelo whatsapp com uma frase curta: "pode levar pro agility no próximo domingo". Lá fomos Clara e eu. Eu não sabia bem o que era agility. Vi uns vídeos na internet. O cachorro ia correr, saltar, pular uns obstáculos. Não era isso que me importava. Expliquei pra Luiza e pra Thais Rodrigues: "eu não sei o que há de errado com a Clara. Ela é bem socializada. Foi socializada desde bem novinha. Ela tem tudo o que precisa pra ser feliz. E mesmo assim, ela não é feliz. A gente não está feliz. Ela late. Me disseram que é medo. Eu só quero entender o que causou esse medo."
Eu não sabia o que era socializar um cachorro. Achava que o filhote estava socializando pelo fato de ter ficado solta na vida, de ter brincando com os cachorros debaixo do bloco por meses a fio. Eu não sabia que socializar um cachorro é algo deliberado, em que as interações do filhote (e do cachorro mais velho, quando necessário) são muitas vezes pensadas e organizadas para obter o sucesso. Eu não sabia que antes mesmo do cachorro terminar o protocolo de vacinação, apesar do que dizem muitos veterinários, a Clara tinha que ter sido apresentada a uma quantidade imensa de outros cães (vacinados e bem educados, claro). Eu não sabia que ela precisava ter sido apresentada a diferente tipos de pessoas, grandes, pequenas, baixas, altas, de chapéu, com guarda-chuva, com sacola de compras. E que todas essas interações deviam ter sido daquelas que só geram boas lembranças no futuro. Eu não sabia que um cachorro bem socializado não é um cachorro que vai pra todo canto, mas sim um cachorro que sabe como deve se comportar em cada local de forma adequada. Quem diria que o Alê tinha razão, e que a gente devia mesmo ter ensinado a Clara a sentar ou deitar comportadamente embaixo da mesa e ali permanecer calma e relaxada enquanto a gente tomava um café?
Clara passou quase dois meses sem se aproximar do campo em que outros cachorros faziam agility. Descia do carro tensa, lá longe, no estacionamento. Sentava como quem diz: "eu não quero ir!". Luiza e Thais me orientaram a respeitar seu tempo. A me aproximar, a andar com ela em volta do campo, deixar que o vento levasse o cheiro dos outros cachorros até ela. O primeiro dia foi muito chato. Eu estava envergonhada de ver todos aqueles cachorros juntos, brincando, praticando um esporte, conectados aos tutores. Duas alunas me disseram nesse dia pra não me preocupar, para insistir, que ia melhorar, e me contaram os casos de suas cadelas medrosas. Talvez tenha sido por isso que voltei na semana seguinte: esperança. Eu ainda não sabia o que era dessensibilização, contracondicionamento. Eu não sabia como esses protocolos podiam mudar a nossa vida.
Foi no dia 17 de agosto de 2017 que a Clara brincou com o Inigo (um vira-latinhas muito parecido com ela) pela primeira vez no campo do agility. Ela tinha um amigo, o Costela, mas fazia mais de ano que eu não a via fazer um novo amigo, brincar e correr daquele jeito. Foi um dia de muita emoção pra mim, pra ela, que mais tarde mexia as patinhas como se corresse nos sonhos. Eu estava orgulhosa, feliz, e dava minha missão por cumprida. Pensei muito em não voltar. Já tinha conseguido o que queria. Mas... tinha sido divertido, por quê não voltar no próximo domingo?
Foi ali, no Agility DF, que acabei fazendo amigos, conhecendo um tanto de gente que gosta de cachorro e que quer ver os seus felizes como eu queria ver a minha. Foi ali que a Clara fez muitos amigos e evoluiu bastante. Foi ali que Luiza me deu apoio para fazer o curso para treinamento de cachorros que mudou a minha visão da vida, da minha relação com a Clara, que me ensinou tanto sobre como interagir, e que finalmente me mostrou que o importante não era descobrir as razões pelas quais ela demonstrava comportamentos associados ao medo, mas lembrar de treinar o cachorro que está na minha frente, aquele cachorro, daquele jeito dele, naquela hora. Que me ensinou que não é legal rotular o cachorro, que não existe um cachorro melhor que o outro, e que o seu cachorro é o reflexo da sua habilidade como treinadora. Que me ensinou a comemorar meus sucessos, os pequenos e os grandes. E, principalmente, que me ensinou a valorizar as qualidades do meu cachorro, as alegrias que ele me traz, a força da nossa relação de amizade, carinho, respeito e companheirismo.
Eu aprendi que treinar cachorro tem que ser divertido. Não é sobre dominação, sobre imposição de vontades ou de força física, mas é sobre como brincar, sobre rir, sobre fortalecer laços de amizade. Antes, eu via meu marido brincando com ela e, às vezes, pensava: talvez eu não sirva para isso, eu não sei brincar com cachorro e não gosto de "lutinha". Eu aprendi que o cachorro não se cansa fácil, nem que você corra uma maratona por dia, que você gaste 4 horas do seu dia embaixo do bloco. Aprendi que não há no mundo exercício físico que faça o bem que alguns minutos de treino (de exercício mental) fazem para o cachorro. Aprendi que nada no mundo paga a alegria de ver um cachorro adulto colocar a cabecinha de lado e te lançar aquele olhar doce, como fazem os filhotes quando estão aprendendo algo novo.
E foi assim, o nosso trajeto. Do agility pro curso, do curso pros livros, pros novos amigos (meus e da Clara). Comprei os livros, me matriculei nos cursos, me apaixonei pelo assunto: comportamento, linguagem e educação canina. Vou te dizer: dos livros pra escola, nem eu sei bem como aconteceu. Me chamaram, cá estou eu.
Nesses últimos anos, nós treinamos muito. Ela está perfeita? Não. Longe disso. Ela tem semanas ótimas, dias não tão bons. Passa muito tempo sem reagir, sem apresentar sinais de medo, e ai, pluft, tem uns dias de "cachorrinha assustada". Mas então, o que mudou? O que mudou é que agora a gente se entende muito melhor, eu respeito a minha cachorra, essa dai, com tudo que vem junto com ela.
Nos últimos dois anos nós treinamos muito, mas nós nos divertimos muito mais. A gente assistiu muita tv jogadas no sofá, a gente passou muitas tardes relaxantes na beira do lago, a gente tomou muito banho de cachoeira, jogou muita bola, viajou, passeou por todo lado, fez novos amigos e aprendeu uma quantidade imensa de coisas novas.Eu sou muito grata pela presença da Clara na minha vida. Sou infinitamente grata por ela ser exatamente assim, do jeitinho que ela é. Se Clara fosse um desses "cachorros fáceis", eu provavelmente não estaria aqui, escrevendo esse post de apresentação, integrando uma equipe de treinadoras de cães. Clara me ensina todos os dias como o amor incondicional é capaz de gerar movimento, de transformar. Ela mudou as nossas vidas, nossa casa, e eu tenho certeza de que sou uma pessoa melhor e mais interessante por causa dela. Obrigada, pequenininha, por ser minha melhor companheira.



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